Carne

Pedro G.
4 min readOct 13, 2015

--

O carro bufa e cisca tal qual um touro. Jerônimo não se incomoda e atravessa a rua na maior. O farol enverdece, suspense; micropartículas de asfalto e borracha voam pelo ar, invisíveis a olho nu. Quando Jerônimo conclui sua jornada até a calçada oposta, o veículo arranca alucinado. Nove da manhã e os nervos das cinco da tarde.

Jerônimo, que prefere ir a pé. Diz que não tem jeito para ônibus, trem. E isso ele não diz, mas toda vez que precisa sentar num assento ainda quente de outra bunda, é como se absorvesse algo daquela pessoa. O Jerônimo, que não gosta disso. Se sobe no caixotão de lata, se inquieta, é para descer logo, às vezes dois pontos antes. O sacolejo até faz mal.

— Tá pensando que é caminhão de laranja, porra?

No 856R, sentido Lapa, vai receber da firma o que lhe devem. Nem rico, nem pobre. Médio que dói. Jerônimo, nem velho nem novo, sempre à toa, recém mandado embora. Que pede grana para a mãe, ouve os xingos do pai, sai pela rua, chuta uma latinha, bebe cachaça, folheia revista, fuma um, corre pro jogo do Palmeiras. Que não para num emprego nem com reza brava.

Esse último num açougue. Despedido por esquecer de botar a redinha na cabeça, três vezes. Cliente que achou cabelo na alcatra e o caramba. Melhor assim, que antes era de Santo Amaro até a Alfonso Bovero, todo dia, amassado no coletivo que nem bosta. Mas agora, última vez que faz esse caminho, benzadeus. Entregar a rescisão e o demissional, pegar a carteira de trabalho e o cheque. E muito obrigado, até mais ver.

Jerônimo, nome que não dá nem pra apelido. Volta e meia pensava nisso, mas agora até que gosta. Coisa da mãe com santo, reclamou muito, esperneava até, mas aprendeu a respeitar. “É foda, mas mãe é mãe.” E segue com esse nome mesmo, meio amuado, meio ansioso, que o busão já vai chegando no final da Teodoro.

Emporpeta a olhos vistos: muita cerveja, pouco exercício, mais os sacos de salgadinho Fofura na saída do trabalho, de uma daquelas lojinhas de guloseimas. Ê pança! Passam as bancas de flores na Dr. Arnaldo, coladas ao muro do cemitério, e ele sente um calafrio:

— Sai, zica! — murmura.

Depois do trevo da Heitor Penteado, a Dr. Arnaldo vira uma ruazinha agradável, com igreja, casa residencial, árvore. Jerônimo desce no último ponto dela, e o resto vai a pé. Caminha tranquilamente pela rua arborizada das Perdizes, sonhando com o dia em que vai morar ali. Padaria, antena de TV, o sebo que fechou. Sozinho, vai lembrando. Já tem o nome do livro: “Memórias do Abatedouro”. Chega a sentir saudade do trampo. Há uma semana, estava ali cortando bife, moendo patinho, no intervalo jogava cartas e espiava as minas bonitas da região.

No açougue, chegando, nenhum cliente à vista. Nada nunca muda, e lá estão o frigorífico, o balcão e o Batista, um piauiense de 45 anos, há cinco nesse emprego (agora supervisor). Tem mania de chamar todo mundo de senhor. Bom no truco, fraco na cacheta. Atrás dele, as carcaças penduradas balançam no ritmo do fim da manhã.

— Ô, s’ô Jerônimo! Voltou pros bifes, foi?

— Grande Batista! Voltei nada. Vim é pegar o que eles me devem.

— Iiih, então o s’ô vai sair lisinho!

Que nem os cabelos da Thaís, a menina do financeiro. Fazia tempo que Jerônimo estava de olho, mas ela nunca deu a liberdade. Séria, a calça social justinha, o corpo belamente sentado na cadeirinha na saleta do escritório, inclinada sobre a papelada para encontrar a ficha de Jerônimo. Que espia. Depois, pensa nas fichas. O que falta nessa aí?

— Então, parece que não deixaram o seu cheque aqui.

— Tá brincando… Cê não tem o talão?

— É que precisa ser assinado pelo Paulo. Você poderia voltar amanhã, ou a gente deposita na sexta.

— Aí você me quebra, Thaís… Pô, já vim lá de Socorro até aqui! — exagera, prestes a descontar uma grosseria na mina. Mas aí aquieta, que vagal costuma se ferrar mesmo, e nem é culpa da moça. Só um pouco de má vontade. E nem é novidade vinda dela. Que seja, fique pra sexta, que se foda. Que se foda o cheque, que se foda a Thaís, que se foda o frigorífico, que se fodam os bifes, que se foda o Batista, que se foda o Paulo, que se foda a redinha de cabelo, que se foda a Alfonso, que se foda o 856R, que se fodam as Perdizes inteirinhas.

— — —

De volta ao busão. Nem liga para o sacolejo, e só encrenca com o troco em moeda. Fora o calorame brutal de quinze pro meio dia, um bafo que chega a molhar. Que é que a Thaís tinha que ter esquecido da porra do cheque? “Não gostar é uma coisa, mas isso aí já é sabotagem”, determina.

O coletivo balança a quilômetros de Santo Amaro. E nele o Jerônimo, que empamonha a olhos vistos, não arranja emprego fixo, cujos amigos todos mudaram de rolê, que sua na nuca e debaixo da orelha. Cheio das oportunidades indesejadas. “Só bagulho zoado, mano”. Do suor e da maldade; do cheque esquecido pela Thaís; que nem o Batista sentiu falta; que não pegava uma mina já há dois meses. Jerônimo, sempre com um princípio de plano.

E onde é que eles dão errado? Percorre Pinheiros, a Faria Lima, Tabapuã, Avenida Santo Amaro, Borba Gato. Entra o bêbado. Ô tiozinho chato! Fedido. Jerônimo fica fulo, quer machucar. Se ainda a Thaís tivesse lembrado do cheque... Ou o Paulo. E agora esse bebum. Tá louco. Pelo menos devolveram a CTPS.

Quando se dá conta, a porta de trás está fechando e o motorista arranca. Ficou para trás o Largo Treze. Parada, agora, só depois da ponte.

— Filha da puta! Thaís filha da puta! Paulo do caralho! Porra! — berra sozinho. Tá nem aí pro resto do povo, espantado.

Depois silencia. Desce no ponto que lhe cabe e anda. Sem saber mais como odiar, o sol rachando a cuca, ele enterra a unha na pele, que rasga a carne e jorra o sangue. Debaixo dos olhos, a cara vai ficar marcada. Paciência. Procurar trampo, só mês que vem.

--

--