Funcionário Notável — 5. Reparação

Pedro G.
4 min readMay 25, 2015

“Saia da Rotina”, dizia o anúncio no metrô. Era a primeira vez que reparava nele. Mais um cartaz direcionado a Glício e seus semelhantes; rapazes cansados, curtidos pela adolescência tardia, enfurnados em baias e interpretando os papéis que lhes cabiam, enriquecendo, envelhecendo, fazendo e não fazendo filhos.

Saia da rotina, adote um gato, tire um cochilo, compre um carro, vá pescar. Arranje um novo emprego, queime seu terno, curta um fim de semana na praia, ande pelo acostamento na volta do feriado, jogue tudo para o alto. Era a vida que cobiçava, eram as transgressões que desejava um dia cometer, mas… Não se enxergava no comercial da Heineken, nem no da Toyota. Olhava-se no espelho e não via os ombros largos, nem o sorriso confiante, enquanto a barba por fazer o deixava com cara de doente.

– Talvez não seja pra mim — refletiu, em voz alta. A senhora no assento ao lado franziu a testa.

“Quem sabe”, prosseguiu em pensamento, “não era para ter sido assim?” Fazia sentido, afinal: amarelar na frente de todo mundo que importava era a forma de seu cérebro avisar que um alto cargo na Milompas, ou em qualquer outra empresa, não pertencia a ele. Exausto, deixou-se levar por pensamentos de auto-depreciação resignada até o terminal.

Em casa, entrou sem ser visto e trancou-se no quarto. Se não na Milompas, se não essa carreira, então o quê? Pobre Glício. Cavoucou a mente o tanto que pôde e não conseguiu traçar um caminho para si. Por toda sua existência profissional — a única a importar no Mercado com eme maiúsculo –, viveu antecipando o dia em que obteria o sorriso branco, as gravatas estreitíssimas, o penteado vencedor, que nunca chegariam. Sem plano B, havia cometido um horrível engano. Dispensou a atenção da irmã e da mãe e dormiu cedo, lágrimas nos olhos, aterrorizado pelo dia seguinte.

Às 6 da manhã, acordou ainda mortificado. Não era pouco o que teria de enfrentar. Gozações, chistes, ironias, até ofensas veladas. Chorou no banho, seu pescocinho fino tremendo indefeso a cada soluço. Comeu demoradamente, a quinoa mais dura do que o normal, o leite de soja cheirando a fermento. Sabia que o resto da semana seria duro. Deu dinheiro à Gleice, para que comprasse sorvete “de consolação”.

No ônibus, lembrou do anúncio. Saia da rotina. Mas como? Nunca havia incomodado Glício tanto quanto agora sua falta de criatividade. Um escravo do dia a dia e suas armadilhas. A humilhação na frente Rasmussen-Hütz e a vergonha dos dias seguintes eram parte do purgatório, o pedágio de quem escolhe uma vida correta, com salários em dia e ginástica laboral.

“Até que faz sentido”, ponderou, agora começando a encarar a desventura como “parte do processo”. E por que negar esse processo? Por que essa obsessão em “sair da rotina”, em largar tudo, renunciar às férias, ao décimo-terceiro? Qual o problema de uma vida ordeira?, questionou. Por que insistem em nos vender asas em anúncios de celular, quando sabemos todos o que faz o sol com elas? Bem, haveria tempo para sair da rotina mas, por enquanto, Glício pretendia ir ficando no emprego. “Assim… até as coisas mudarem”, definiu.

No escritório, suportou bravamente os risos, os comentários em voz nem tão baixa assim e até mesmo uma fotomontagem maldosa, deixada na frente de seu monitor após o almoço. Uma conversa agridoce com Flávio garantiu que sua situação na empresa se mantinha, mas com uma advertência, para que não se deixasse afetar tanto. “Ruim para o funcionamento sustentável da companhia e seu próprio bem-estar”, explicou o chefe. Aos poucos, e antes do que esperava, Glício ia voltando à normalidade.

***

No fim do dia, entrou no banheiro do décimo-quarto andar e viu, numa das cabines, um par de calças cinzas arriado sobre sapatos italianos de couro finíssimo — algo que havia aprendido a identificar em seus anos corporativos. Tentou ficar em silêncio, imaginando ser um dos vice-presidentes da Milompas Adnardes num momento íntimo.

– Anybody there? — soou uma voz familiar.

Glício titubeou. Havia esquecido que Rasmussen-Hütz ainda estava na cidade, escondido dos olhos dos funcionários em intermináveis reuniões. Enfim ganhava seu momento a sós com o manda-chuva, mas numa intimidade que sabia não ser ideal. Imaginou que ser o único a testemunhar a ida do CEO ao toalete talvez não fosse benéfico para suas pretensões. Tímido, arrastando o inglês, enfrentou seu destino.

Acontece que havia acabado o papel higiênico na cabine de MRH, que precisava de um rolo. Constrangido, mas certo de sua utilidade, Glício providenciou.

Quando terminou, Rasmussen-Hütz lavou as mãos e fez questão de cumprimentá-lo. Não parecia se lembrar de seu rosto e nem do vexame do dia anterior. Agradecido, concedeu ao funcionário um dedo de prosa, como manda o protocolo. Traduzida de forma livre do inglês (e descontando os erros gramaticais de Glício), a conversa foi mais ou menos assim:

– Obrigado pela mão, meu amigo.

– Não tem de quê. Fico feliz em poder ajudar.

– São colaboradores atenciosos como você que fazem desta empresa o que ela é.

– Seu discurso foi muito inspirador, sr. Rasmussen-Hütz.

– Qual seu nome?

– Glício, senhor.

– Deixe-me perguntar uma coisa que tenho perguntado a todos que conheci por aqui: qual sua coisa favorita na Milompas Brasil?

– Depois de pensar um pouco… Diria que é a segurança que eu sinto trabalhando aqui.

– Ha! Boa resposta. Pelo menos você não falou daquele mascote de patê, como a maioria. Achei aquilo meio bobo.

Mikkel Rasmussen-Hütz apertou a mão de Glício, saiu pela porta e desapareceu numa sala de reunião.

A história do Glício é contada em 5 partes. Não perca o fio da meada!

Parte 1: http://bit.ly/1FnXvfd

Parte 2: http://bit.ly/1FnXVCk

Parte 3: http://bit.ly/1AnoyZ2

Parte 4: http://bit.ly/1HmR4aw

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