Meus álbuns favoritos de 2015

Pedro G.
15 min readJan 19, 2016

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Já virou lugar comum exaltar as desgramas de 2015. Durante um ano, testemunhamos barbáries, desmandos, polarizações e preconceitos terríveis. Dos ataques grotescos do Estado Islâmico às discussões insuportáveis nas redes sociais – intensificadas após as eleições do ano anterior –, passamos 12 meses em guerra fria.

Na minha opinião, entretanto, mais do que um período trágico, foi um ano muito especial. Seja pelas tragédias ou pelas manifestações, 2015 finalmente nos colocou em movimento, salvos da letargia após um 2014 perigoso e frustrante. No ano passado, caíram as máscaras, vieram os fatos e, lentamente, vamos aprendendo a assimilá-los.

Prova disso são seus álbuns. Neste top 10, por exemplo, praticamente todos os tópicos importantes de 2015 são abordados: feminismo, Black Lives Matter, jihad, refugiados, multiculturalismo… É gratificante pensar que, bem, nossos artistas estão chegando a tempo do que realmente importa, cada vez menos interessados em perder a carruagem por narcisismo. Mais ainda, é possível que estejam ajudando a moldar esse lugar novo que tentamos construir.

Decidi por 10 discos pois queria me aprofundar em cada um deles, com pequenos textos, reflexões e uma relação íntima com a mensagem que eles têm a passar. Também, foram cerca de 50 discos novos que ouvi e um top 15 ficaria fácil demais. No entanto, se você é daqueles que gosta de listas maiores, segue abaixo os 5 discos que teriam completado meu top 15. Em seguida, os textos de cada um do top 10.

15. Pops Staples - Don't Lose This
14. Ghostface Killah & BBNG - Sour Soul
13. Viet Cong - Viet Cong
12. Mark Ronson - Uptown Special
11. Vince Staples - Summertime '06

10. Figueroas - Lambada Quente

“Ti-ti-ti-ti-titinena, tá com frio? vem dançar
que a lambada te esquenta”

A melhor coisa de Lambada Quente é sua honestidade, a forma como nunca nos é negado que, bom, Givly Simons veio mesmo do rock, e que tudo bem ser um pouco poser. E isso acaba ganhando um sentido positivo. Não é preciso negar as tatuagens dos Beatles e os movimentos de Mick Jagger para cantar lambada. E essa é uma mensagem clara de como vai bem nossa desenvoltura cultural, num momento em que eu e você, aqueles antigos garotos de camiseta preta puída, temos procurado bandas da Bulgária e rock persa.

O lançamento do disco pela Läjä Rex, de Fabio Mozine, revela também uma tendência mais específica entre alguns roqueiros brasileiros, de se voltar para ritmos sul-americanos como o brega, a lambada, a guitarrada, a cumbia e a chicha. Não é incoerente, uma vez que nosso rock mais alternativo sempre buscou um clima essencialmente “desencanado” — e, embora esse não seja o melhor termo para definir a chicha, por exemplo, seu ritmo lombrado dá conta dessa impressão. Taí: Givly redefiniu o pathos do roqueiro brasileiro — e ele é bem mais divertido que um rolê de doidão na frente do Bahia às 3 da manhã.

Mas o que diferencia o Figueroas daquele grupo enorme de caras músicos com camisas de estampas esdrúxulas, parados em frente ao bar mais maneiro da sua cidade? Em primeiro lugar, o talento do produtor Dinho Zampier, um tecladista de bastante feeling, extremamente habilidoso e riffzeiro da porra. Depois, porque a piada é levada até o final, e não existe o nojinho cosmopolita das grandes metrópoles, aquele medo besta de parecer tolo. E isso é comprovado desde as letras bagaceiras à aparição no Programa do Ratinho — nenhum deles depreciativo; pelo contrário, legais pra cacete.

9. Tyler, The Creator - Cherry Bomb

“Oh, you the motherfucking man, huh?
Oh, you be fucking bitches, counting all the bands, huh?
Oh, you be trapping out the bando selling grams, huh?
Oh, you be smoking, drinking lean, and popping Xans, huh?
You see, that’s the bullshit that I don’t need”

Arrumei briga por causa desse. É que, durante determinado período, foi meu disco de hip hop favorito do ano. Hoje, com distanciamento maior, é fácil encontrar falhas no trabalho — talvez a mixagem tenha ficado iconoclasta demais? Ainda assim, prefiro pensar na evolução apresentada por Tyler como compositor.

Wolf, de 2013, provou que sua rebeldia não rendia mais e, além disso, desta vez ele parece apaixonado. Pela fama? Pela grana? Pela música? Por uma mina (que, segundo os rappers rivais, é meio “fraca”)? A verdade é que Tyler finalmente dominou uma arte que vinha praticando desde seu segundo álbum: unir em harmonia a saturação mais podre com a musicalidade mais inevitável e luminosa — esta facilitada pelo grande trabalho das cantoras Syd Bennett e Kali Uchis. A primeira dica é em Pilot, que segue as truculentas Deathcamp e Buffalo, e a ideia se firma na faixa-título e em Fucking Young/Perfect. Ainda há espaço para música de FM em 2Seater e Find Your Wings (e um jingle belíssimo em Blow My Load). Quando Tyler resolve falar sério, desanca um tipo de rapper que vai ficando obsoleto na agressiva The Brown Stains of Darkeese Latifah Part 6–12 (REMIX).

A confiança que exibe nessa canção, aliada a temas como “encontrar suas asas”, mostra que ele está crescendo, cada vez mais seguro de quem é. Com Cherry Bomb, Tyler se afasta do estigma de rapper arruaceiro juvenil e se aproxima de resultados sublimes — o melhor movimento de carreira que poderia ter feito. O futuro é um latifúndio.

8. Dungen - Allas Sak

“En gång om året står vi still
(uma vez por ano ficamos quietos)
Tänker allt går för långsamt
(pensando como tudo é demorado)”

Meu maior dilema nesta lista, por mais paradoxal que seja, foi escolher entre Dungen e Vince Staples. Mas se de um lado, o excelente disco do rapper tem paralelos idênticos nos últimos anos, a obra psicodélica e multiinstrumental da banda sueca é mais rara, apesar da proliferação de bandas “psicodélicas”. Em canções como En Gång Om Året e En Dag På Sjön, fica clara a viagem sonora que eles propõem, e a quantidade de timbres, climas, ápices e jams apenas nos prova como, de fato, poucos conseguiriam fazer isso.

Até Allas Sak, eu não conhecia o Dungen, mas quando fui me informar, descobri que antes de Kevin Parker já havia Gustav Ejstes. O produtor escandinavo já produzia e tocava todos os instrumentos de seu projeto desde o lançamento do primeiro trabalho, em 2001. Ele também foi um precursor do revival psicodélico que só ganharia corpo em 2011, com o próprio Tame Impala e a cena da Austrália. Em 2015, finalmente, há quem reconheça que foi Ejstes o responsável pelo melhor disco do estilo no ano (eu, né. Fazer o quê?).

O que diferencia o Dungen de seus pares é sua experiência e autoridade num jogo que uns meninos achavam ter sido os descobridores, mas também sua crença firme em instrumentos musicais e na história que esses podem contar. É assombroso pensar que Ejstes toca a maioria das percussões, metais e flautas que escutamos — além dos instrumentos de sempre do rock –, mas também é um alento para uma visão mais tradicionalista, que defende a música não como um desfile de estilos, e sim, bem, um ofício.

7. Songhoy Blues - Music in Exile

“We’re asking the refugees to have patience (Soubour),” Garba explains. “Without patience, nothing is possible.”

Segundo a ONU, são quase 60 milhões de refugiados no mundo todo, um recorde histórico. Como essas pessoas, tão distantes de tudo que conhecem, fazem para manter seus alicerces culturais? Garba Touré, Aliou Touré e Oumar Touré (não são irmãos; o sobrenome é como “Silva” no Mali), decidiram pela música. Não que já não tocassem: os três vêm do norte do Mali, de cidades próximas a Timbuktu, um dos maiores polos culturais do deserto e da África. Tomado por animais salafistas num golpe, agora é proibida a música no norte.

Em Bamako, capital do país, foram descobertos pelo Africa Express, trupe que promove encontros entre figurões como Damon Albarn, Brian Eno, Nick Zinner e nomes da música africana em coletâneas especiais e shows de 4 horas. O guitarrista do Yeah Yeah Yeahs tratou de produzir o primeiro álbum, levar os rapazes pras Zorópa e ajudar o grupo a ter seu devido reconhecimento. Talvez pela produção de Zinner, as guitarras sejam tão incríveis, mas não esqueçamos que o Songhoy Blues vem da terra de Ali Farka Touré. O sobrenome da banda também não é figurativo, e Hendrix, BB King e John Lee Hooker são fortes influências. Seja como for, os melhores riffs de 2015 são do Songhoy Blues.

É difícil encontrar as letraspor aí, mas em entrevistas, alguns significados foram revelados por eles: Soubour pede paciência, Al Hassidi Terei é sobre egoísmo, Desert Blues é sobre os jihadistas e Mali comenta a situação do país, dividido pela guerra civil. No meio do caos, é essa melancolia dos refugiados que mantém vivos seus costumes. Como verdadeiros griôs, o Songhoy Blues desafia os tempos e os idiotas para levar sua história adiante.

6. Jamie xx - In Colour

“I go to loud places
To search for someone
To be quiet with”

Jamie xx é um ano mais velho que eu. Crescemos, portanto, na mesma época, com a presença de Kurt Cobain ainda forte, Radiohead, emo, Strokes e Franz Ferdinand, fora centenas de imbecis periféricos como Smash Mouth e Limp Bizkit enchendo o saco. Não é à toa que somos uma geração meio perdida, tristonha até. Vivendo em Londres, no entanto, Jamie captou algo a mais que pairava sobre os anos 90 e 2000.

Sendo um contemporâneo do autor, consigo compreender o que In Colour propõe, mas somente um inglês como Jamie poderia sentir tamanha nostalgia por raves que nunca teve idade suficiente para conhecer. Faixas como Seesaw e Obvs escancaram o fetiche do produtor por todas as festas de ontem, enquanto em Stranger in a Room, com Oliver Sim, sonha com silhuetas brilhantes de desconhecidos em quartos escuros de balada. Somente a moderna I Know There’s Gonna Be (Good Times) olha para o futuro com maior ternura e antecipação.

O amor pelo passado que eu, Jamie e toda gente da nossa época compartilhamos é um fardo pesado, uma bigorna numa esteira rolante — e a tal da pedra que rola da montanha. Mas não será essa a sina de toda a humanidade — idolatrar sempre os mesmos deuses? O principal mérito de In Colour é, com sua neo-nostalgia, propor a atualização desses mitos: George Martin por Giorgio Moroder, talvez? Em algum momento as guitarras precisariam descansar.

5. Earl Sweatshirt - I Don't Like Shit, I Don't Go Outside

“Good grief, I been reaping what I sowed
Nigga, I ain’t been outside in a minute
I been living what I wrote”

Daqui uns anos, talvez seja algo ridículo mencionar em uma resenha o passado de Earl Sweatshirt no Odd Future, tudo por causa de seu álbum mais recente. Mesmo assim, vamos lá: surgido como o enfant térrible que tomava cascudos no meio das gravações do grupo, o rapper depois seria “exilado” pela mãe num reformatório em Samoa, para voltar em 2013 com um elogiado álbum. Mas sua emancipação de fato só chegaria este ano, com I Don’t Like Shit, I Don’t Go Outside.

Distante do selo Odd Future Records e da influência de Tyler, The Creator, Earl apresenta um disco adulto, denso, introspectivo, “artístico” até. Ele não apenas aperfeiçoa seus beats e discurso (que todavia preservam um pouco do ar característico das produções do OF), como também aparece mais concentrado e sábio. Grief é a peça central, um épico de batida arrastada e duração de pouco mais de quatro minutos, a faixa mais longa de um disco breve e conciso. Quase no final, DNA é outro destaque, hip hop ambiente de groove leeeento e piano afiado. Earl dispensa aparições estreladas (como as de RZA e Mac Miller em Doris, seu segundo) e conta com poucos feats, o mais notável deles de seu velho colaborador Vince Staples em Wool, um rap nervoso que fecha o LP.

Mesmo surgido em um badalado grupo e tratado pelos fãs como uma espécie de Dom Sebastião durante seu intercâmbio disciplinar, Earl recusou as mordomias do caminho da megafama. Se a opção pelo alternativo vai compensar no longo prazo, não dá para prever. Por agora, contudo, Earl parece ter feito a escolha certa e superado com alguma folga seus antigos companheiros.

4. Julia Holter - Have You In My Wilderness

“I’m standing here on the ground, Betsy, my arms stretched out
Looking up, won’t you please tell me the answer”

Por algum tempo, durante a adolescência, folk foi meu principal objeto de interesse na música. Qualquer coisa com o selo de Singer-Songwriter era um convite. Mas tive de esperar até agora para de fato presenciar o lançamento de um disco nesse estilo que de alguma forma… chegasse lá. Tipo, que entendesse, sabe? Porque Julia Holter ecoa Nico, Linda Perhacs e Vashti Bunyan, alternando entre climas pastorais e de Rainha do Gelo, mas jamais dispensa grooves e arranjos mais modernos, que de certa forma a emancipam da música pura e simplesmente de nicho.

Ela também sucede porque entrega melodias improváveis, mudanças de pitch que soam naturais e interpretações etéreas num mundo povoado por apostas certeiras demais. A primeira faixa, Feel You, engana pelo pop, mas adianta o resto do álbum com uma levada inteligente e produção impecável — hit na redação de qualquer caderno de cultura. Mas é em How Long? que a cantora nos toca o coração, alcançando notas melancólicas e grandiosas dentro de nossas almas — elas mesmas. Em seguida, vem um desfile: Lucette Stranded On The Island, Sea Calls Me Home, e Betsy On The Roof são outros bons exemplos de como o disco chega perto de suas inspirações. E, veja só, em Everytime Boots, dá até para pensar em Morrissey.

Mas o que é que faz Julia realmente chegar lá? Pode ser a sinistra concordância dos momentos mais lúgubres do álbum com os tempos solitários que vivemos; Talvez as letras de feminilidade adulta, sem concessões; Quem sabe, sua inegável habilidade em combinar homenagem e contemporaneidade; É possível, também, que seja pela voz mais bela, doce e cálida de 2015. A resposta fica a seu cargo, se você não deixar essa passar.

3. Elza Soares - A Mulher do Fim do Mundo

“Meu choro não é nada além de carnaval
É lágrima de samba na ponta dos pés
A multidão avança como vendaval
Me joga na avenida que não sei qualé”

Elza Soares lançou o grande disco feminista de um ano em que o feminismo foi uma das palavras-chave. Isso não é pouco, e na verdade é ainda muito mais. Seu disco nasce no empoderamento feminino, mas acaba se estendendo a todos, pelo exemplo universal que é a inacreditável aventura da vida de Elza. Ela chega aos 78 anos com seu disco mais original e grandioso, e uma maravilhosa performance cultivada ao logo de uma jornada trágica, imponente, miraculosa.

Cada nota é uma declaração de força, áspera e triunfante, e causa arrepios logo de primeira em Coração do Mar, a cappella. Depois, na faixa-título, o canto de Elza, gigante, se encontra com o outro grande trunfo de A Mulher do Fim do Mundo: os arranjos do time de músicos paulistas (entre eles, Romulo Fróes, Kiko Dinucci e José Miguel Wisnik) que produziu o projeto. Seus riffs e piras permeiam petardos como Luz Vermelha, Pra Fuder e Benedita, esta uma reverência a Itamar Assumpção e o Isca de Polícia, espécie de precursores do “rock-samba-torto” que esses músicos hoje tocam.

Mas a canção que fica como verdadeiro hino e sintetiza a principal mensagem do ativismo contemporâneo é Maria de Vila Matilde: “há de se arrepender quem botar meus direitos em cheque”. Ainda resta um longo caminho a se percorrer, e uma necessidade latente de reflexão e diálogo — se em 2015 vimos as pautas feministas ganharam espaço no centro da discussão, também aprendemos sobre a quantidades de arestas a aparar. É por isso que o disco de Elza é um troféu: ele se apresenta gregário, robusto e inspirador em um front ainda dominado pelo conflito e pela dúvida.

2. Algiers - Algiers

“We are all walking in the dark
With scissors in our hands”

Como é que ninguém ouviu este? Das profundezas de Remains, a primeira faixa, ao sample repetido no finalzinho, o autointitulado álbum do Algiers agride a indiferença. Seja pelos temas sociais espinhentos ou por uma dobra grave e sinistra na voz do vocalista Franklin James Fisher que assombra a maioria das canções, é impossível não intimidar-se pela banda. “Há um novo show para você assistir hoje, para que os olhos do Oeste possam olhar para o outro lado”, rugem.

Na verdade é gratificante para o rock (e sua reputação) que o Algiers exista. Originária da Geórgia, estado americano de tensões raciais perenes, mas formada por rapazes brancos e negros de experiência internacional — dois deles se conheceram durante um intercâmbio no Reino Unido — é uma banda que junta conhecimento de causa com alguma erudição (quer dizer, o nome do grupo é baseado na resistência argelina aos franceses). E é imprescindível, nesses tempos, termos quem consiga falar com desenvoltura de direitos humanos, de geopolítica e revolução dentro do rock. “Chega de discos feitos por gente que dá aperto de mão mole!”, já ouvi dizerem.

A fórmula sonora é baseada em gospel, post punk (analógico e digital) e Afghan Whigs. Sendo assim, como errar? O disco todo é uma missa negra iluminada por tochas bruxuleantes e sonorizada por palmas e cantos de devoção. Em Blood, o principal single, ao consumismo. Em Games, à derrota. Mas é no suingue de Black Eunuch e na pancada de But She Was Not Flying que o Algiers mostra definitivamente sua explosão e angústia. Dê um presente a si mesmo e descubra este disco antes dos seus amigos.

1. Kendrick Lamar - To Pimp a Butterfly

“I remember you was conflicted
Misusing your influence
Sometimes I did the same
Abusing my power, full of resentment
Resentment that turned into a deep depression
Found myself screaming in the hotel room
I didn’t wanna self destruct
The evils of Lucy was all around me
So I went running for answers
Until I came home”

Já em Wesley’s Theory, a primeira faixa, Kendrick Lamar expõe o que será seu disco: uma trama intrincada de temas como racismo, fama, dinheiro, inveja e culpa. “We should’ve never gave niggas money”, ironiza, em uma das primeiras declarações fortes de um álbum destemido — não apenas pelas feridas que toca, mas também pela musicalidade complexa e escolhas estilísticas ousadas. Desde o estouro de good kid, m.A.A.d city, Kendrick já indicava se tratar de um rapper diferente. Em To Pimp A Butterfly, diria o clichê, é impossível não notar como ele saiu esbelto do casulo.

“Oh America, you bad bitch, I picked cotton that made you rich/Now my dick ain’t free” recita ao final de For Free, mais uma piscadela mordaz para os Estados Unidos e a forma como a cultura negra é vendida por pouco, mesmo 150 anos após o fim da escravidão. Esse é um dos temas centrais e fio condutor do trabalho e inspiração para seu nome. "Pimpar uma borboleta", segundo Kendrick, é o que a indústria do entretenimento faz, transformando coisas belas e puras em máquinas de grana e malícia.

A citação principal do álbum, reproduzida acima, vai aparecendo gradualmente ao longo das músicas, e nos ajuda traçar uma possível narrativa dentro dele. É como se Kendrick contasse a história de um artista negro, confuso e culpado com seu sucesso (este personificado numa alegoria, “Lucy”), que vai refletindo ao longo das letras sobre as questões internas e externas responsáveis por esses sentimentos torturantes. u é o ponto central dessa angústia, onde o eu-lírico primeiro desabafa sobre como é complicado amá-la, a fama, e em seguida precisa ouvir de um amigo de infância (bebaço) o quanto ele se sente traído pelo amigo famoso. Mas é ao chegar em casa, em Momma, que o artista percebe que “não sabe porra nenhuma”, e passa a olhar com mais zelo para os problemas do lugar e das pessoas que deixou para trás. A partir dessa música, aparecem as faixas mais assertivas: Hood Politics, The Blacker the Berry, Complexion e i.

Kendrick, no entanto, certamente “pimpou” a música de seu álbum. A mistura de vertentes do jazz, funk e batidas profundas não é necessariamente uma novidade, mas em To Pimp a Butterfly, ela é feita de maneira tão inusitada, moderna e esmerada, que não encontra tantos precedentes diretos. Muito dessa qualidade vem de colaborações que valem o name dropping: Flying Lotus, George Clinton, Dr. Dre, Snoop Dogg, Pharrell, Ronald Isley… Além das megaestrelas, Kendrick também trouxe para seu lado alguns dos artistas mais intrigantes da atualidade, como Kamasi Washington, James Fauntleroy, Thundercat, Bilal e Anna Wise.

Se em algum momento o disco foi criticado, é pelo fato de sua aura unânime estar muito mais atrelada às coisas que ele diz e à situação socioeconômica que denuncia do que pelas canções em si, algumas até demoradas para se acostumar. Quanto a isso, não há o que negar. Mas esse é justamente seu trunfo. Quantos lançamentos de 2015 ainda são capazes de criar um universo em torno de si, mobilizando pessoas e discussões, instigando o ouvinte a estudá-los?

Antes de tudo, o álbum de Kendrick é uma obra essencialmente negra, que referencia sua cultura consecutivamente, seja na entrevista fictícia com 2Pac Shakur ou nas referências à promessa de “40 acres e uma mula”, com acenos a Kunta Kinte e ao “Hit me!” de James Brown. Pela importância que teve no conturbado ano de 2015, To Pimp a Butterfly é forte candidato a sentar ao lado dos ícones que celebra.

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