Ressaca

Pedro G.
1 min readSep 22, 2015

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Na fila, lembra dos anos bons. Lembra das viagens, lembra dos banquetes, lembra dos campeonatos vencidos por seu time, lembra do sonho da casa na Rua Bucareste — quando ainda se sonhava. Suas memórias trazem à tona tempos pacíficos de Natais fartos e concertos espetaculares, tempos de autoestima e confiança. Daqueles dias, restam hoje a barba cheia, o cabelo arrumado e a roupa social justinha.

– Que ressaca!

Enfadado, observa o celular de penúltimo tipo e a grotesca rachadura que ele traz na tela. Com 15% de bateria, é possível distrair-se um pouco. Ao seu redor, a fila do cartório — de almas tão execráveis, de tanta irritação mal contida — se dissipa como a fumaça bruxuleante de um cigarro ilegal. Estão enrolados em altas de juros, quedas de bolsas, seda para tabaco orgânico.

A fila anda um passo. O tabelião, entediado, coça o nariz. Também sente falta de quando os pistões, válvulas e serrotes trabalhavam sem parar, construindo um progresso, agora se sabe, de estrutura tão oca. Porque valia a pena. Porque podia-se esconder tão bem aquele desprezo, aquele desgosto. Em seu peito, o pesar de todos os anos: o futuro chegou e estou velho.

Agora, a liberdade é um caqui orgânico, mas as piores notícias também. Em volta delas, as crianças feitas na bonança passam desfilando certezas em tênis parcelados e tatuagens meia manga. Seus dedinhos hábeis encontram respostas para perguntas que ainda nem foram feitas.

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