Rosalía x Anitta: uma questão cultural

Pedro G.
5 min readApr 13, 2022

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Música Pop. Hits. Sexualização. Sensualidade. Sexualidade. Vozes femininas. Sucesso feminino. Feminismo. Dinheiro. Fama. Representatividade. Cultura. Idioma. Internacionalização. Streaming. O consumo da música em 2022.

Quando ouvi pela primeira vez “Motomami”, o terceiro álbum de Rosalía, pensei também em todas essas palavras-chave que se relacionam, em maior e menor grau, com as discussões acerca de “Envolver”, o hit de Anitta que chegou no topo da parada global do Spotify há algumas semanas. Não que a comparação seja cabível além da livre associação: qualquer aspecto do terceiro álbum de Rosalía é objetivamente melhor do que “Envolver” e todas as outras músicas lançadas durante a recente americanização de Anitta.

Rosalía busca criar, enquanto Anitta só quer reproduzir. “Motomami” passeia por estilos e idiomas através de beats complexos e um canto versátil e belo. “Envolver” emula o ritmo do momento enquanto uma voz que poderia muito bem ser gerada por inteligência artificial canta em espanhol bem discernível, na medida certa para agradar o máximo de públicos possível. Nas letras, como é habitual, Anitta promove uma sexualidade 2D, onde pessoas irretocavelmente perfeitas arfam de prazer em paraísos eternos de delícias — aos feios, aos esquisitos e mal-ajambrados, paciência. Já Rosalía, com seu álbum, escreve uma autobiografia cheia de textura, por vezes divertida, por vezes melancólica, frequentemente sensual e inegociavelmente destemida.

Alguém poderá perguntar “Por que criar uma rivalidade inexistente entre duas mulheres? Por que causar desunião entre elas?” É que não se trata de um embate entre duas mulheres, pessoas físicas, e sim, de duas visões de mundo conflitantes. O sinal de mudança importante é perceber que uma discussão cultural desse tamanho agora seja, enfim, personificada por duas mulheres e suas maneiras de se expressar.

Com “Envolver”, o grande feito de Anitta — empresária talentosa e eficiente — foi ter a música como a mais escutada no Spotify em todo o mundo num dia. Foi considerada por muitos brasileiros uma conquista nacional, mesmo que impulsionada basicamente por cliques e mais cliques, numa ação coordenada pelos fãs — algo não muito diferente das votações em massa nos paredões do BBB (há até suspeitas de manipulação através de robôs, mas vamos assumir que o processo foi limpo). Como costuma ocorrer com esse tipo de mobilização por rankings e recordes, o conteúdo do que está sendo promovido é secundário.

“Envolver” é um reggaeton genérico, com uma letra genérica e cantada genericamente numa língua estrangeira a Anitta, de modo que não tem qualquer característica que represente o Brasil ou sua cultura. A nacionalidade da cantora dessa canção é, no máximo, residual. Ainda assim, num mundo (e, principalmente, infelizmente, num país) onde o que vale é o grito e a viralização, temos uma vencedora, alguém que “chegou lá”. Antes de seu canto, Anitta é admirada por seu tino invejável para os negócios e pela forma que cada um de seus lançamentos é cuidadosamente planejado como uma campanha do McDonald’s (com uma simpática bandeirinha do Brasil espetada no pão).

É claro que “chegar lá” é relativo. Primeiro, precisamos definir que lugar é esse. Para a Poderosa (as pessoas ainda chamam ela assim?), é o olimpo das celebridades americanas, onde há festas nababescas de egolatria e desperdício, onde o mundo se percorre de jatinho e as pessoas têm dinheiro para ser quão atraente decidirem ser. Do lado de fora, as “pessoas de verdade” apenas assistem, embasbacadas, enquanto perdem suas vidas comprando os produtos empurrados por essa gente.

Nem sempre foi assim. Durante sua subida meteórica pelo Brasil, Anitta foi uma artista ousada e inovadora que, em determinado momento, representou a passagem de bastão para uma nova era da indústria. Com seus hits e megaproduções, consolidou uma nova sensibilidade na música popular brasileira que há anos ameaçava furar a bolha, mas ainda não tinha conseguido por completo. No segundo em que desbancou Ivete Sangalo como maior cantora do país, também elevou o funk e sua batida ao posto de música-base do Brasil. Isso não é pouco e nem deve ser desprezado.

O grande problema é a maneira como ela, então, resolveu se lançar internacionalmente: genérica, americanizada e promovendo a sensualidade brasileira de uma maneira não muito distante do que seria uma propaganda pró-turismo sexual. Seríamos um povo sexual e nada mais, plasticamente bruxuleando uns por cima dos outros, todos saudáveis, todos atraentes, nenhum de nós jamais frustrado, nenhum de nós sequer doente. Pouco se passaria em nossos cérebros.

E quanto a Rosalía? Em sua Espanha natal, ela lidera e molda a mudança de imagem do país no pop mundial. Valendo-se de um apoio institucional que o Brasil há muito tempo deixou de dar à sua cultura, artistas espanhóis têm conseguido conciliar vendas e prestígio no mercado da música. Através da sensualidade do flamenco, uma certa e polêmica apropriação de ritmos de suas ex-colônias e produção de vanguarda, o pop espanhol é hoje quase à prova de falhas. Nos Estados Unidos, capital do Império, Rosalía já cantou com Billie Eilish em Euphoria, botou The Weeknd para cantar em espanhol e recentemente esteve no Saturday Night Live.

Com “Motomami”, ela apresenta uma pintura intricada, cujo tema principal é difícil de definir, embora haja muitos: sexo, fama, luxo, romance, família, amigos, insegurança, transformações. E da mesma forma que o mundo da cantora traz emoções bem mais complexas do que o pop genérico se acostumou, há diversidade nas referências estéticas que explicam como ela chegou ali, de James Blake à música caribenha, passando por um remix de escola de samba e o anime Aeon Flux. Todos esses elementos se misturam naturalmente, sem constrangimento e nem uma vontade específica de agradar.

Mesmo que Rosalía também faça parte da nobreza que recebe sacolinhas com presentes de luxo em premiações de Hollywood, é mais fácil se identificar com ela. Seus interesses são mais diversos, suas histórias são mais complicadas, suas melodias são mais intrigantes ao ouvido. E se sua sexualidade existe no desejo, na febre e na auto exaltação, também acontece na vulnerabilidade, na curiosidade, na dúvida, no anseio, no medo, no amor.

Enquanto escrevo este texto, “Motomami” vai se firmando como um dos grandes discos de 2022. O desempenho de suas músicas nas plataformas de streaming é tão impressionante quanto o de “Envolver”, mas sua influência e reconhecimento prometem ser mais duradouros. Também porque não é algo de ocasião. Em 2018, Rosalía já tinha reintroduzido o flamenco no imaginário mundial com El Mal Querer, seu segundo disco, que a transformou numa celebridade e voltou as anteninhas para a música que estava sendo feita em seu país e seu idioma.

Por que isso não acontece no Brasil quando Anitta chega ao alto das paradas e frequenta farras por toda a América do Norte? Meu palpite é que talvez o público internacional enxergue na cantora brasileira uma celebridade divertida, enquanto vê em Rosalía um som novo vindo de um lugar interessante. E a importância estratégica dessa percepção, para qualquer país, é gigantesca e fundamental.

Certamente, o caminho da novidade é mais esburacado até o mesmo topo comercial que se chega jogando seguro. Envolve expectativas, frustrações, riscos e mais riscos. Mas leva a um resultado muito mais satisfatório. Hoje, Rosalía canta com nomes “do momento”; Anitta, com nomes de um momento ligeiramente anterior. Não é difícil perceber o tamanho da diferença que isso faz.

Afinal, é uma questão de escolha. E uma escolha muito maior do que cabe às próprias artistas, uma que é feita nos altos gabinetes de suntuosos palácios, onde políticos e grandes capitalistas deliberam. Na Espanha, decidiu-se que a cultura é um ativo de exportação de valor incalculável — especialmente num momento em que o poderio cultural americano parece entrar em declínio. No Brasil, preferiram deixá-la na mão do agronegócio e de brilhantes celebridades-mercadoras.

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