Uma Palavra que Começa com C

Pedro G.
7 min readJan 21, 2016

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Escrevi esta história há muitos anos. Ainda amo o final dela.

De alguma forma, é interessante pensar no que vai ser da velhice dessa geração de Caíques e Rafaeis Eduardos, criados a queijo cottage e leite de soja em quartos com ar condicionado dentro de condomínios intransponíveis.

Nasceu em setembro de cesariana. Não porque tivesse alguma complicação, mas porque a mãe considerou que nove meses de barriga já eram sofrimento suficiente e que, embora não tenha formulado a frase dessa maneira em sua cabeça, as dores do parto eram um tanto quanto medievais para uma mulher moderna como ela. O pai concordou e não economizou nos melhores médicos, pois era homem importante e endinheirado. O novo membro da família estava fadado a seguir o mesmo caminho da importância e do dinheiro, e não seria um parto o responsável por botar empecilhos nessa missão delineada há várias gerações.

A cesárea foi um sucesso e, nem tanto tempo depois, o bebê crescera e já adorava televisão. Os desenhos entretinham, mas interessante mesmo era o intervalo comercial. Boneco de ação, achocolatado, mochila, videogame, chiclete, jogo de celular, carrinho que anda sozinho: tudo isso estava ao alcance do menino. Bastava avisar às babás que elas logo ligavam para a secretária do pai, que providenciava tudo.

As babás (duas), aliás, foram suas primeiras amigas. Era com elas que ia ao parque, ao cinema, às festas de aniversário e até à Disney. Papai e mamãe estavam presentes só de vez em quando, mas as babás, sempre. Assim funcionava a lógica dos pais e, por consequência, também a dele: se não podiam estar ali, como quase nunca estavam, as babás poderiam suprir a ausência.

A cumplicidade que o menino desenvolveu com essas mulheres não impediu que protagonizasse, ao longo dos anos, episódios desagradáveis em que destratava e até humilhava suas companheiras fiéis. Dentre as coisas que aprendeu com as pobres-coitadas que sua mãe havia contratado para substituí-la, a mais valiosa foi a quem tinha permissão para tratar mal.

Acabou que, quando já tinha idade o bastante, não sentiu a partida das moças vestidas de branco, das quais não mais precisava. O pai olhava esperançoso para o filho que crescia; o que imaginara para ele caminhava firme no sentido da realidade. O playground do condomínio era um mundo infinito onde as crianças se bastavam, sem exposição à verdade cheia de contratempos da rua.

Por isso mesmo, lhe pareceu excêntrico quando o garoto teve, aos 16 anos, a ousadia de desrespeitar o combinado, dispensando o taxi que mandara até a porta da matinê para chegar em casa três horas depois do previsto. Jurou que só estava andando de skate nas imediações da Vila Mariana. Mas a desobediência e o temor do pai em ver o filho envolvido com uma atividade tão arriscada foram motivo suficiente para um castigo pesado, o primeiro que jamais impusera ao rebento: duas semanas sem videogame.

Riscos — à sua integridade física, ao seu futuro — não houve mais. Cansado das discussões que seguiram o episódio, o menino aceitou que naquele momento era o elo mais fraco. Sorveria a vida ordeira e confortável que lhe era oferecida como papinha. Ainda era novo… até podia ser que seus pais soubessem mesmo o que era melhor para ele.

Abraçou apenas os amigos aprovados pelos pais, estudou os assuntos que os pais consideravam importantes, bebeu somente a quantidade de álcool que eles beberiam e frequentou as festas que seus pais teriam ido se fossem mais jovens. Omitiu de si qualquer manifestação terna em direção a qualquer assunto abstrato, evitou posições firmes e ignorou a arte promissora que insistia em aparecer, primeiro em seus cadernos, e depois nos blocos de nota em sua mesa de trabalho.

Os anos que seguiram foram como já se esperava. Baladinhas, lounges vip, faculdade de economia e emprego bacana num banco de investimento. Com 28 anos, conheceu a mulher que seria sua esposa. Clarice se apaixonou, sim, por seu dinheiro e sua importância, mas principalmente — e genuinamente — pela sua gentileza. Não bem gentileza, mas uma espécie de nulidade tão intensa que chegava a cativar. Essa nulidade dialogava de forma eloquente com a apatia de Clarice e juntos formaram um casal sólido, sem muita ideia de como ser de outra forma. Aos 32, vieram os gêmeos (e a cesariana, e as babás). Um ano depois, o convite do pai para que assumisse um cargo importante na empresa da família. Lá, assumiria o poder e passaria o resto de sua vida.

(Agora é importante notar: Entre a última rebeldia que cometeu, aos 16, e seu final intrigante, foi uma vida monótona. Se não para nosso personagem principal, que curtiu réveillons em iates, viagens de primeira classe à Europa e bônus salariais imensos, pelo menos para o leitor, que não encontraria, mesmo no relato mais minucioso, qualquer sinal de aventura. Carlos Henrique, vamos chamá-lo de Carlos Henrique, não se amedrontava de viver com medo. Se gabava da distância segura que mantinha do mundo desde os tempos de playground.

Todo santo dia checava as câmeras de segurança da casa, toda hora dava uma olhadinha desconfiada pela janela e fazia questão de pagar os guarda-costas em dia e com bônus todo mês. “Nesse tempo todo com esses caras, só fui assaltado uma vez. E por descuido meu!”, contava aliviado e até orgulhoso. Talvez seja esse o grande Episódio da vida do nosso Caíque. Um monte de pequenos acontecimentos e anedotas que, juntos, representaram sua postura em vida e que acabariam explicando sua morte.)

Enfim.

Nossa história chega ao começo do fim numa visita ao consultório do Dr. Bulhões, um dos médicos de confiança da família. Seu único problema era a especialidade: proctologia. Se o ideal é fazer o primeiro check up por volta dos 40 anos, Caíque demorou alguns mais para tomar a coragem necessária. Na verdade, o que o motivou foi mais um assalto que sofrera quando já beirava os 50. Percebendo uma contração anormal no órgão em questão durante a abordagem, achou por bem cuidar melhor daquele seu pequeno radar particular do medo. E foi.

Duas décadas depois, de volta à maca do doutor para mais uma consulta anual, o problema foi detectado. Uma bolotinha, um cisto. Um tumor? Talvez. Maligno, Bulhões?! Vamos observar… Na verdade, o que mais encafifava o médico era o aspecto daquele cu. Parecia estar faltando um pedaço, parecia menos vivo, mais trancado. Quando chegaram, os exames trouxeram resultados inconclusivos.

Os meses que seguiram foram duros para Caíque. Abatido, tinha certeza de que sua vida estava por expirar. Foi ficando mais preocupado, mais paranoico. Não tinha certeza se os filhos poderiam continuar o legado da família na empresa, que triplicara sob seu comando. Durante suas vidas, os garotos não mostraram o mesmo tino para os negócios que os ancestrais. Restaria deixar o comando da corporação para os acionistas, mas esse nunca foi o seu sonho, nem de seu pai, nem de seu avô.

A insegurança com seu legado e o temor em perder a vida refletiram num cuidado ainda maior com a segurança. Mandou instalar uma terceira câmera no jardim, contratou mais um guarda-costas, queria sempre saber onde estavam todos, o que seria feito de tudo. Mania de velho doente, dizia, embora fossem as mesmas manias de quando era jovem e saudável, apenas. Claro: aquela era a vida que ele havia escolhido e com ela vinham suas chagas, até o fim..

Com o passar do tempo, o cisto transformou-se em doença. Caíque sentia-se fraco, seu sangue estava mais fino, as dores pelo corpo se multiplicavam. A junta de médicos comandada pelo Dr. Bulhões trabalhava com a hipótese de câncer de próstata, mas todos tinham certeza de estar lidando com uma moléstia totalmente inédita. O mais perturbador era ele estar cada vez mais, bem, “apagado”, o ânus.

Constrangido e cada vez mais angustiado, Caíque pediu licença da presidência da empresa, entregando-a na mão dos conselheiros e acionistas. Os sintomas, dali para frente, só tornaram-se mais confusos. O mais inusitado deles era de natureza dermatológica — nem era possível saber se estava mesmo relacionado com a doença. Um negocinho redondo na palma da mão direita, uma bereba detestável que evoluiu para um desnível e depois para um buraco mal formado. E doía. Era só o que faltava, uma queloide misteriosa numa hora dessas!

Conforme o estado de saúde piorava, o buraco ia tomando formas cada vez mais estranhas. Suas bordas foram se juntando, enrugando. Uma das empregadas da casa, religiosa fervorosa, chegou a afirmar que eram as chagas de Cristo. Mas por que no apático Caíque, ainda mais àquela altura da vida? Ninguém levou aquilo a sério e houve até quem achasse graça que supusessem que aquele Carlos Henrique tivesse qualquer traço de divindade. De certo, só a vergonha que ele sentia daquela deformação, motivo pelo qual não era mais visto sem luvas e evitava olhar para a palma da mão.

Um ano depois do fatídico exame na sala do Dr. Bulhões, quase dia por dia, Caíque se via sozinho, deitado em seu leito de morte. Clarice estava na rua, às voltas com as pendências que envolvem as viúvas e as quase viúvas, os filhos ocupados com suas vidas, enquanto outros parentes e amigos não visitavam com tanta frequência assim, até por determinação do doente. Naquele exato momento, até mesmo a enfermeira particular estava em horário de almoço.

O ânus já havia sumido, transformado em parede intransponível (e agora suas funções eram feitas por um aparelho e uma bolsinha). A doença indefinida era de alta gravidade. O personagem que acompanhamos por intermináveis 20 parágrafos sentia-se mais fraco do que nunca, um fiapo de gente endinheirada num quarto de hospital ultra tecnológico. Entediado como só um moribundo pode ficar, decidiu tirar a luva da mão direita para ver como andava aquele aborrecimento dermatológico que tanto o envergonhava. Chocou-se com o que viu. E, num grito assustado, pronunciou suas últimas palavras, finalmente enunciando aquilo que demorou uma vida inteira para compreender:

– Puta que pariu! Tem um cu na minha mão!

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